sábado, agosto 15, 2015




Nota .este blog é pessoal, e por isso ,de relativo interesse, senão para a sobrinhada. Lerá quem o quiser faze ,depois de avisado)


Eu e …. a Srª do Pranto

       




 São em alguns momentos contraditórias, as lembranças que me ocorrem com o festejos da Srª do Pranto, acontecimento religioso-pagão, desde sempre muito ligado à minha família paterna: os Fonsecas.Naquele tempo em que a família era como que um clã.


Não tive a felicidade de conhecer o patriarca, o Prof. Fonseca, meu avô, homem de uma personalidade muito vincada e própriaOnde a dureza, a exigência e a ética, atingiam valores de excepção (até excessivos,ouvi alguns queixarem-se...). Dele ouvi relatos que muito influíram na minha postura perante a vida. Muito ligado ao Convento, à Capela e à sua remodelação, professor da segunda Escola de Ílhavo, sua propriedade (como o eram as Escolas dos Moitinhos e Gafanha de Aquém) o Avô foi um dos maiores de Cimo de Vila. Este «maior» ,era um apelido advindo de uma célebre história.O da construção da estrada Ílhavo –Gafanha da Maluca, que se pretendeu ser financiada pelos «40 maiores», expressamente convocados para o efeito. Ora, o maior dos maiores, era então, dizia-se, o Padre Manuel Nunes da Fonseca, meu tio avô. Vamos lá saber como o Padre arranjou tal fortuna, e como a transmitiu. Nunca me falaram de tal história.
A Família esteve sempre envolvida nos festejos em honra da Senhora (a pietà à portuguesa).

O meu tio Avô, «Manel», era um exímio tocado de concertina. E para lá disso, um «cantador ao desafio», de excelência. Parecia ter resposta para todos os introitos colocados na contenda. Das redondezas vinham cantadores afamados, para se «bater» com ele, em público, em local aprazado. O Tio «Manel», era o homem que guardava o «Arco da Festa», e era na sua imensa eira que o mesmo era, anualmente reparado. Matador de porcos (para lá da sua lavra),quase que diríamos, oficial publico do ofício, a cegueira fê-lo passar as facas ao seu filho único, meu primo Manuel Fonseca. Com a recomendação de, mais tarde, elas passarem para o mais novo Fonseca. Que era eu!!!...ora vai-te …eu que não me atrevia a matar um frango, ia um dia manusear aqueles facalhões (?!)….O pior é que a família parecia acreditar. E sempre que havia matadela, lá tinha eu de ir ajudar o Manuel a limpar(lavar os gorgomilos) ao pobre bicho, a ver se estava bem amarrado pelo pernil, segurar-lhe bem o «pezunho» encolhido, e ver o espectáculo horrível do facalhão …uma…duas…três vezes…. ir buscar todo o sangue ao animal. Não aquilo não era espectáculo que me animasse a desejar ser, o herdeiro das facas ,Se bem que demonstrasse nata aptidão para com elas proceder ao desmanchar do porco.




 Bem voltemos à Srª do Pranto…

Até certa altura tudo lindo. O pior é que, chegada a idade dos namoricos, estivesse onde estivesse, houvesse o que houvesse – e quase sempre havia: – regatas, bailes etc. etc. – eu teria de comparecer, ainda que a mau gosto, em Ílhavo.E por ali ficar todo o tempo da festa.

Para lá da parte religiosa, em que não era obrigado a participar – à excepção de uma ou duas vezes acolitar o Padre Ângelo, na missa –,os festejos tinham o seu cartaz de marca, que os distinguia na emulação bairrista com os de «lá de baixo», especialmente na degustação excessiva de vitualhas e iguarias. Senhores de grandes e fartas casa, andavam de uma para a outra, em visita «às capelinhas» dos «primos», parecendo que já não se víam há anos (quando o mais certo era terem lá estado na semana anterior).Só que agora em visita mais demorada, com ida à «mesa da cozinha de dentro», se o «primo», nesse ano, tivesse recebido a «vara de Juiz».


Em casa dos meus Avós, alinhava-se uma catrefa de caçoilas pretas ,onde o «chibo» era cozinhado com todo o saber e arte:
 -Oh Virgínia (a cozinheira) cuidado :olha que o Sr Dr. é muito esquisito no carneiro. Oxalá que o Alpoim(o fornecedor do animal) ,nos tenha servido bem. Ferveu bem, na hortelã? E esta era fresquinha, bem cheirosa ?

Eu, rapazola atrevido, estava (muito) mais interessado no peito farto e eriçado da Virgínia, do que propriamente nas caçoilas. E ia fazendo de conta que estava a «vigiar» as ditas...
As caçoilas depois de prontas, muito tempo antes da festa. Eram então ensacadas, e depois penduradas na frescura do poço. Um enorme poço que mantenho ( embora sem as caçoilas….).

O almoço de 15,tinha lugar na «casa da Escola», em Cimo de Vila, no pátio enorme, debaixo de frondosa parreira.Reservado à Família mais chegada. À noite vinham jantar os amigos ( Dr Amilcar, Teiguinha, dr Julio Calisto, Tio Dorindo etc. etc.) Em qualquer das comezainas lá estava a caçoila, depois de previamente fervida três vezes (duas antes de ir estagiar no poço,e a ultima ao ir para degustação. Tinha de chegar à mesa, a ferver, em cachão. Senão era logo recambiada.

À tarde era a procissão.



 As Irmandades ladeavam os anjinhos de vestimenta a condizer, onde pontificavam as asas brancas.Que era imaginado levá-los a passear pelo céu. Vinham os andores, enfeitados, jardins prodigamente floridos, sendo o da Senhora, o último. Era seguido pelo «pálio» que albergava o Priorado, conduzido por figuras gradas da comunidade. A banda marcava o compasso,seguida por multidão que engrossava a fileira dos adeptos do Orago.

O andor….


....tinha acabado o sétimo ano, e comigo, o Zé Balseiro, o Malaquias e o Álvaro, rapaziada estudante de Cimo de Vila. Convencidos do bom olhado do Orago, todos prometemos, se as coisas corressem bem, levar o andor na procissão. Quando fomos buscar (a miniatura... veja-se bem!!!!) à «Capela do Morgado da Srª da Nazaré, constatámos que apesar de miniatura, a Senhora ( que diziam ser uma réplica pequena) era toda feita de pedra de granito, tendo um peso de se lhe tirar o chapéu. Vamos desenrascar isto… e se bem o pensámos, logo o fizemos A primeira coisa foi tirar as costas, à dita, substituindo-as por palha. Ainda por cima a procissão, nesse ano, ia dar a volta ao Cruzeiro (o que nem sempre sucedia). E lá começámos …o nosso calvário. Levar a Senhora a percorrer as vias sacras do Cruzeiro, vir à Igreja Matriz, e voltar a Cimo de Vila. Foi um caso sério. Eu e o Malaquias, à frente, mais baixos, apanhávamos com o peso, acrescido da componente da deslocação inclinada. E por vezes andávamos aos baldões. Foi preciso recorrer aos garfeiros (?,)amiúde, para nos acudir (devem ter um nome próprio, as varas com a muleta para pousio nos momentos de paragem, metidos nos varais).
Lembro-me que só não chorei por vergonha. Mas raios (!), um «Fonseca» ir-se abaixo das canetas (?!), era miserável. Depois soube, que, afinal, todos estivemos com vontade de desistir. Mas pela mesma razão, por respeito aos nossos nomes, cerrámos dentes, retesámos músculos e levámos a Senhora, sã e salva, a bom porto…(ando a descontar pecados desde então…).À noite estávamos todos encangados, a tratamento de pachos quentes, para safar as pisaduras. Aí pensei seriamente no sofrimento de Cristo a levar a cruz ao calvário...


O arraial da festa tinha lugar à «sombra» do Arco imponente.




                         Excepcional foto de Manuel Fernandes



As tendinhas dos bolos (suspiros – de que eu gostava particularmente –, bolos de gema ,cavacas, etc.); as tasquinhas de «comes e bebes», a mesa da vermelhinha (onde eu perdia tempo para decifrar o enigma),a quermesse, o balcão do tiro às latas, eram locais por onde o povo ia gastando a noite.Pelo ar havia uim cheiro a querosone, que fedia, das lamparinas que davam a luz mortiça e tremula, á mesinha da venda. 

                             Lamparinas a querosone


 Lá para as 11 da noite, havia o ponto mais esperado: -o concerto das bandas. Entre os temas reproduzidos, os assistentes deslocavam-se de coreto em coreto (lembra-me de ver a Musica Velha, sob regência do Prof.Guilhermino, e a Musica Nova, sob a batuta do maestro José Morgado, em franco despique, a levar ao rubro a assistência.Sucedendo, não raro, o desforço físico,numa sarrafuscada do caneco !),para melhor ouvir os acordes(e as desafinações…).Os maestros –ouvi dizer– tinham estratégias delineadas: logo que uma das bandas tocava uma peça de determinado grau de dificuldade, logo o outro contendor ripostava, atacando com peça, ainda (!) de mais complexa execução. Durante a exibição de cada peça reinava um silêncio sepulcral; no final, as palmas . A intensidade e duração das mesmas, levaria ao reconhecimento do vencedor do duelo.


O dia seguinte era o que mais me atraía ao largo da Capela. Era tempo para divertimento popular: foguetes que ao explodirem soltavam bonecos de papel que voavam; lançamento de cavacas à multidão(tipo S.Gonçalinho). Subida ao mastro encerado para trazer o bacalhau. O puxar da corda, a corrida de sacos, a disputa do jogo da malha etc. Este jogo popular, vindo das calendas do tempo, era praticado por equipas espalhadas pelo Concelho (ou fora dele ), que aprazavam jogos aos fins de semana, exibindo os jogadores virtualidades de precisão incríveis. Onde o posicionar do corpo, ligeiramente agachado, pés, um atrás do outro, braço esquerdo estendido servindo de equilíbrio ao braço lançador, era um espectáculo de rara beleza, em que apenas no golf encontro sincronização tão exigente.


No jogo da corda a equipa que contasse com o Carlos Fonseca era a ganhadora; o Carlos, meu primo, filho do Manuel, era um verdadeiro Apollo. Forte como um touro, de uma força braçal incomensurável, tronco hercúleo num corpo de quase dois metros..., não me recorda de alguma vez ter visto outra tão colossal figura

E VIVA A PÁTRIA!!!!!!
 

Exultava a dançar, a encolher e esticar o fole da concertina, comandando o trio de exímios concertinistas; o exímio tocador, o meu tio, o Velho Ti Manel (com os seus 82 anos) , puxava pelos concertistas: o seu filho Manuel Fonseca, e o meu pai ,também de seu nome, Manuel Fonseca. Lá em casa só eu é que desbotei….Nem bombo nem ferrinhos...coisa nenhuma....


Com o tempo, veio o desmembrar da família. Já praticamente só resto eu.
Cada vez mais, me fui separando do meu sítio. Tenho lá a casa dos meus ancestrais, que tento manter una. Difícil. E na certeza que comigo ela desaparecerá. A não ser que uma Instituição promova algo de concreto e e sólido, e a requeira. Ao visitá-la, vem-me à ideia o percurso onde me fiz homem – com montes de virtudes e mais defeitos –, e onde bebi que o gesto de Cristo, de oferecer a outra face, é lindo mas inútil. A todo o acto de violência, venha de onde, ou de quem vier, reage-se de que maneira for, mas reage-se. Entre a espada e a parede…a espada.  

Este ano fui observando os esforços de dar, à festa, uma nova roupagem. Depois de uns anos de esquecimento, obra do «troglodita esteves», que no meio da pipa de massa que andou a desbaratar, nem uns míseros tostões encontrou para a recuperação do Arco ,as coisas mudaram com o apoio de uma Junta, finalmente, a marcar a agenda em Ílhavo. O outro peralvilho, nem sabia que o «arco da Srª do Pranto» é mais genuíno, que o encomendado, delirante e fantasioso, brasão de Ílhavo.



Já se foi. Bons olhos o vejam. Entretido a dar cabo da cultura dos cagaréus.

Uma Comissão genuína, interessada e devotada à tarefa, ofereceu á parte pagã da festa, uma nova vestimenta.


                                 O «Novo Banco» da Cidade

Interessante união de gentes em volta de um projecto disposto a dar vida a uma parte da cidade onde restam, ainda, uns interessantes tiques do passado. Reavivar esse historial, recuperar tradições, unir gentes,é uma tarefa de grande interesse social. Certamente que a continuar surgirão novas ideias e projectos.

Bem o merece :um lugar de gentes diferentes.

SF


 

 

2 comentários:

clara disse...

Aqui vai uma coisa feita por mi











Nossa Senhora do Pranto



Senhora do Pranto e do Vento
Ilha de Dor que navega
Feita longe numa vela
Ilha de barro dourado
Ilha de enganos profanos
Ilha de renda
Ilha lenda
Senhora do Pão e do Pranto

Ilha de Sal maravilha
Uma manta de mantilha
Labirinto pensamento
Carpideira cerzideira
Cheiro a café na soleira
Senhora do Pranto e do Riso

Cascata folar casamento
Teia de Helena tecida
Na rede de rede e matiz
Ponto ajour no diz que diz
Um andar de marinheiro
E um falar prazenteiro
Amode cantado jingado
Senhora do Riso e do Pranto

Evoé Ilha Evoé
Sete carris de lamento
Senhora do Pranto e Presságio
Evoé Ilha Evoé
E no beco pelo vento
Vem teu presságio naufrágio

A casa a cama a coragem
Castigo poeta perdido
Senhora de Má Maré

Evoé Ilha Evoé
Senhora do Negro Manto
Trazes no vento o lamento
Há uma noiva a chorar
Não vai haver casamento
O lugre ficou no mar

Senhora do Negro Manto
Cobres a noiva de Pranto
Senhora do Negro Manto
Senhora de Névoa e de Morte
Senhora do Pranto e do Vento
Senhora do Vento Norte

Evoé Ilha Evoé
Ilha minha meu olhar
Nela aprendi a coragem
E o valor desta viagem
Senhora Minha Coragem

Evoé Ilha Evoé
E há segredos por contar
Que guardo na minha alma
À deriva no teu mar
Numa arca de silêncio
Coberta com juramento
Senhora do Pranto e do Vento

Coberta com juramento
Numa arca de silêncio
Nossa Senhora do Pranto
Senhora do Pranto e do Vento (Clara Sacramento)

jamador disse...

Boa tarde,
Ando há anos a escrever um livro de índole genealógica para o qual tenho incessantemente procurado dados biográficos e fotografias de inúmeras pessoas.
É o caso do Dr.Júlio Calisto aqui referido.
Gostava de obter uma fotografia dele. Já apanhei duas na internet mas bastante más.
Será que porventura não terá alguma cuja cópia me possa amavelmente ceder? Ou saberá quem possa ter uma ?
Como não teve filhos não posso recorrer a descendência...
Antecipadamente grato por uma resposta e parabéns pelo site.
Cumprimenta
Jorge Rodrigues

  FREDERICO DE MOURA De novo veio à baila Frederico de Moura, a solicitação de mestranda para recolha de informações. Boa altura para o traz...